Fome: um crime de guerra que permanece impune
Publicado 18 de agosto de 2025Última atualização 22 de agosto de 2025Os apelos para julgar a fome como crime de guerra em diversos dos atuais conflitos estão se tornando mais frequentes e ganhando força. "A fome é uma arma que está sendo usada em todo o mundo no momento. Mas isso tem que acabar, vai contra o direito internacional", afirmou Shayna Lewis, conselheira sênior para o Sudão do grupo americano Prevenção e Fim das Atrocidades em Massa (Paema).
Lewis falava sobre a situação na cidade sudanesa de El Fasher, com 30 mil habitantes e que está sitiada há um ano, situação que gerou a escassez de comida. "É um crime internacional e precisa ser julgado como tal", destacou.
Grupos de direitos humanos, como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch (HRW), fizeram comentários semelhantes sobre o bloqueio israelense à entrada de ajuda e alimentos na Faixa de Gaza.
"Israel está matando Gaza de fome. É genocídio. É crime contra a humanidade. É um crime de guerra", afirmou Michael Fakhri, relator especial das Nações Unidas para o direito à alimentação, ao jornal britânico The Guardian na semana passada.
Nesta sexta-feira (22/08), um grupo independente de segurança alimentar apoiado pela ONU confirmou oficialmente pela primeira vez que está ocorrendo na Faixa de Gaza uma situação de fome severa.
"Após 22 meses de conflito incessante, mais de meio milhão de pessoas na Faixa de Gaza enfrentam condições catastróficas caracterizadas por fome, miséria e morte", afirmou o grupo nesta sexta-feira.
A fome em Gaza foi declarada com base na avaliação de provas coletadas e analisadas pelo mais renomado sistema internacional independente de segurança alimentar, que é apoiado pelas Nações Unidas e é conhecido como "Classificação Integrada da Segurança Alimentar (CIF)".
Sua classificação é composta por cinco fases, sendo a fase 5 a que revela uma situação de fome severa e na qual se encontra o norte de Gaza, onde mais de meio milhão de pessoas "enfrentam condições catastróficas caracterizadas por fome, miséria e morte".
Ao mesmo tempo, 1,1 milhão de pessoas adicionais (54% de toda a população) se encontram na fase 4, que indica uma emergência alimentar.
Fome como arma de guerra
De acordo com especialistas, os crescentes apelos para julgar a fome de civis como crime de guerra ocorre devido ao aumento da fome causada por conflitos. Durante a primeira década deste século, houve poucas situações desse tipo, segundo um relatório da Fundação Mundial da Paz (WPF, na sigla em inglês), mas isso mudou recentemente.
"Esse é um fenômeno antigo, que é utilizado há séculos em conflitos", afirma Rebecca Bakos Blumenthal, consultora jurídica do projeto Responsabilização pela Fome, da fundação jurídica holandesa Compliance de Direitos Humanos (GRC). Segundo a especialista, essa tática ressurgiu depois de 2015.
Na última década, a fome foi registrada em conflitos na Nigéria, Somália, Sudão do Sul, Sudão, Síria e Iêmen. Especialistas em segurança alimentar avaliam que os ataques russos à agricultura ucraniana também podem serem vistos como tentativas criminosas de transformar alimentos em armas. Eles argumentam ainda que houve um aumento deste tipo de crime de guerra.
"Mesmo com a melhoria da segurança alimentar global, incidentes de fome estão aumentando", ressalta Alex de Waal, professor na Universidade Tufts, nos EUA, e diretor de pesquisa sobre fome em massa na WPF. "Isso mostra que a segurança alimentar global é mais volátil e desigual. Isso é consistente com o uso da fome como arma".
A retenção deliberada de comida e itens essenciais para a sobrevivência de civis é considerada um crime de guerra por muitos países e também em várias iterações do direito internacional, como a Convenção de Genebra, que estabeleceu normas para o direito humanitário internacional, e Estatuto de Roma, aplicado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI).
Apesar dessa classificação, até agora, ninguém que usou essa tática em um conflito foi levado a julgamento. O crime de guerra de fome nunca foi julgado em uma corte internacional isoladamente, somente como uma da parte de acusação em cerca de 20 outros casos de crime de guerra.
O fato de civis passarem fome em um conflito, não significa automaticamente que um crime foi cometido. "Uma das questões jurídicas é a intenção. O crime de guerra de fome necessita que o perpetrador aja como a intenção disso", afirma de Waal.
A fome ocorre a longo prazo, pontua de Waal, e alguns juristas argumentam que é necessário provar que o perpetrador teve desde o início, por exemplo, de um bloqueio ou cerco a intenção de matar de fome civis. A maioria dos especialistas, porém, defende uma "intenção indireta", explica. Ou seja, é claro que essa situação ocorrerá "no curso normal dos eventos", e o agressor sabe disso, tendo oportunidades de prevenir que civis passem fome, mas não o fez.
Outra questão para casos envolvendo a fome é a falta de precedentes, além da definição de quais tribunais nacionais e internacionais teriam jurisdição sobre os supostos crimes de guerra.
Mudança de perspectiva
Até há alguns anos, a fome era vista como uma questão de desenvolvimento ou humanitária, afirmou Blumenthal, da GRC. Mas agora está sendo dada mais atenção aos aspectos criminais. "Trabalho nessa questão há alguns anos e essas coisas andam lentamente", conta Blumenthal, que se dedica ao tema desde 2020. "Acredito, porém, que a situação está mudando e que algumas medidas relevantes foram tomadas nos últimos dez anos".
Em 2018, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução que condenou a fome de civis como método de guerra. Em 2019, alterações foram feitas no Estatuto de Roma, tornando a fome um crime de guerra também em conflitos armados locais, em vez de apenas internacionais.
Houve inquéritos da ONU sobre conflitos no Sudão do Sul e na região do Tigré, na Etiópia, focando especificamente na questão da fome como crime de guerra, acrescenta Blumenthal.
"Estamos vendo mais organizações internacionais e locais, juntamente com mecanismos de responsabilização, denunciando isso e certos exemplos marcantes, como no caso de Gaza hoje, ampliaram a conscientização sobre esse crime", ressalta a especialista.
Blumenthal destaca que os mandados de prisão emitidos pelo TPI contra o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e o ex-ministro israelense de Defesa Yoav Gallant em novembro de 2024 são um "marco histórico" por mencionar especificamente a fome como um crime de guerra. Foi a primeira vez que mandados destacam a fome como um crime isolado. Ela acrescenta que a corte possui ainda uma investigação aberta sobre o Sudão.
"A questão, sem dúvida, ganhou atenção nos últimos dez anos. Todas as estruturas legais estão em vigor. O que falta é vontade política para agir", avalia de Waal.
Criminosos condenados?
De Waal pontua que ainda há desafios jurisdicionais, mas ele está confiante de que em muitos casos é possível haver condenações. "Basta levar o acusado ao tribunal".
Blumenthal concorda. "Há equívocos sobre isso e muitos pensam que a fome é uma parte inevitável da guerra. Mas, durante nossas investigações aprofundadas, é surpreendente a rapidez com que fica claro que, na verdade, esses padrões são muito acentuados e em muitas situações é possível discernir uma estratégia deliberada".
Com cautela, Blumenthal está otimista de que aqueles que usaram a fome de civis deliberadamente como arma de guerra enfrentarão em breve a justiça. "Essa é certamente a esperança. É para isso que estamos trabalhando".
Com informações da agência EFE