Crianças afro-alemãs fazem terapia intercultural em Berlim
25 de outubro de 2001São crianças mestiças que geralmente vivenciaram a separação dos pais cedo, crescendo sem a referência de uma das partes, sobretudo a paterna. Na experiência de Ari Andrade, os casos mais comuns são de crianças de mães alemãs e pais africanos, afro-americanos ou afro-brasileiros, que durante seu desenvolvimento sentem dificuldade em elaborar uma identidade bicultural.
O que leva os pais a procurar ajuda profissional são conflitos que geralmente se manifestam na fase de escolarização. Além de dificuldades de alfabetização, as crianças geralmente apresentam um comportamento agressivo ou autodestrutivo, mostram resistência em respeitar autoridade, tendendo a se isolar do grupo.
Afro-alemães em Berlim — O projeto Joliba, criado pelo psicoterapeuta Ari Andrade, em 1996, com pedagogas e psicólogas (afro-)alemãs, presta serviço à Secretaria Municipal do Menor de Berlim, estabelecendo a ponte entre os pacientes de 6 a 18 anos, seus familiares e os órgãos públicos de apoio ao menor. Segundo as estatísticas, 13.611 pessoas de origem africana residem oficialmente em Berlim, entre as quais 1425 crianças com menos de 15 anos. A questão psicossocial por trás destes dados é, no entanto, bem mais complexa do que um mero cômputo estatístico.
Perfil bicultural — Ari distingue entre três gerações de afro-alemães: os nascidos após a I Guerra Mundial, após a II Guerra (sobretudo de mulheres alemãs e soldados norte-americanos) e sob o signo dos movimentos sociais de 1968 — gerações que foram alvo de segregação social.
Atualmente, as famílias biculturais já encontram uma aceitação bem maior dentro da sociedade alemã. No entanto, elas se caracterizam por uma relevante discrepância social. Trata-se de mulheres ou homens alemães, com grau de formação mais elevado do que seus parceiros negros, que — por sua vez -— costumam ter dificuldade de integração. Há muitos casos de homens alemães mais velhos do que suas mulheres negras, que ainda não atingiram a maturidade profissional que lhes permitiria maior autonomia dentro da sociedade. Esses são apenas os casos mais típicos.
Negro ou branco? — Nos conflitos que surgem em famílias biculturais, as crianças são geralmente instrumentalizadas como superfície de projeção das dificuldades de integração do pai, por exemplo, ou como foco de superproteção da mãe, que cria uma relação simbiótica com os filhos para defendê-los de eventuais discriminações ou suprir a ausência do parceiro.
Segundo a experiência de Ari, que também faz o acompanhamento dos pais, a biculturalidade pode levar a uma distorção da imagem do “outro”, oscilando entre a extrema idealização e a exclusão dos elementos culturais não-alemães. O objetivo da terapia em grupo com crianças afro-alemãs é criar um espaço de expressão destes sentimentos, permitindo a (re)elaboração de uma identidade bicultural.
Rituais afro-brasileiros — Numa terapia de grupo multicultural, em que as crianças dispõem de brinquedos de diversos países e se mantêm em contato com sua língua materna estrangeira, é possível reconstituir os objetos de passagem e criar pontes de identificação com a “outra” cultura.
O cultivo de tradições culturais diversas, como a festa de São Cosme e Damião realizada recentemente no Joliba, permite não apenas a criação de um espaço simbólico intercultural, como também amplia a tolerância, inclusive entre os pais. Alemães, africanos e turcos identificam nos rituais afro-brasileiros elementos de suas próprias tradições, reconhecendo pontos de contato entre as culturas.
Holocausto — Como afro-brasileiro residente há 13 anos em Berlim, Ari Andrade não considera a sociedade alemã mais racista do que a brasileira ou a norte-americana. No entanto, admite, a trajetória histórica alemã contribui para a criação de um imaginário específico de exclusão racial. Segundo sua experiência, a crise de muitos de seus pacientes adolescentes começa a partir do primeiro contato com imagens do Holocausto na escola, uma experiência que marca todos os jovens alemães.
No caso dos afro-alemães, a consciência da história do racismo em seu próprio país pode causar uma insegurança ainda maior, levando às mais diversas reações: há estudantes afro-alemães que não hesitam em chamar os professores de nazistas, enquanto outros negros alemães aderem a grupos juvenis de extrema-direita. O projeto Joliba mostra que o trabalho de integração de crianças biculturais pressupõe uma séria reflexão sobre a realidade da discriminação e o complexo imaginário de exclusão racial e cultural na sociedade alemã.
Resultados positivos — A terapia praticada no Joliba surte efeito. Segundo Ari Andrade, ela possibilita a redução dos sintomas, levando a criança a aceitar os aspectos culturais de ambas as partes da família e abrindo maiores possibilidades de integração social. Contando com o reconhecimento dos órgãos oficiais de apoio ao menor, o Joliba já planeja um curso de especialização a ser oferecido a profissionais da área social em toda a Alemanha.