Em todos os países atualmente governados de forma autocrática ou ditatorial, a destruição da democracia começou com ataques ao Judiciário. Foi assim na Hungria, bem como na Turquia e na Venezuela. Hoje se assiste, praticamente ao vivo, nos Estados Unidos.
A tomada de poder por homens como Viktor Orbán, Recep Tayyip Erdogan, Nicolás Maduro e Donald Trump só foi possível porque atacaram juízes, ignoraram sentenças e, por fim, lotaram os tribunais com aliados. O Judiciário (assim como todo o aparato estatal) foi esvaziado e alinhado, e a separação de poderes – base fundamental da democracia – praticamente extinta.
Caso o governo do Brasil volte às mãos da extrema direita – seja sob Tarcísio de Freitas ou um membro do clã Bolsonaro –, o país corre o mesmo risco. O presságio ficou evidente após as manifestações bolsonaristas do último domingo. Os protestos deixaram claro, por um lado, que o nome Bolsonaro ainda possui enorme força de mobilização, e o pensamento primitivo-vulgar continua amplamente disseminado, sobretudo entre os mais abastados. Por outro lado, ficou evidente que o Judiciário é o inimigo número um da extrema direita. Ele é difamado como politizado e parcial, até mesmo como ditatorial. Isso só pode significar, em última instância, que a extrema direita pretende acabar com o Judiciário como um poder independente.
É ainda mais alarmante que o governador de São Paulo agora bata nessa mesma tecla. No domingo, ele mostrou que não é um tecnocrata moderado da direita conservadora, mas um fanático – como a atuação agressiva da Polícia Militar de São Paulo sob sua gestão já deixava transparecer.
O candidato mais provável da oposição brasileira nas eleições de 2026 deslegitimou o Supremo Tribunal Federal diante de dezenas de milhares de apoiadores e deixou claro que não aceita o equilíbrio entre os poderes. Ele incendiou o ânimo no campo da extrema direita e polarizou ainda mais o país.
Perigo para a democracia
Pouco importa se fez isso por convicção profunda ou "apenas" por cálculo oportunista para garantir o apoio de Bolsonaro e de seus seguidores fanáticos. Seu vocabulário menos ordinário e sua postura de homem humilde de classe média já não podem mais disfarçar o perigo que ele representa para a democracia brasileira.
O fato é que Tarcísio de Freitas não reconhece como legítimo o processo contra Jair Bolsonaro por tentativa de golpe, alegando que o julgamento teria se baseado em depoimentos manipulados. Para chegar a tal afirmação, é preciso um grau enorme de ignorância. O processo seguiu todas as regras de um julgamento regular e deu ampla oportunidade à defesa de apresentar sua versão dos fatos.
Ficou claro, após a análise das provas e a oitiva de todas as testemunhas, que os planos de Bolsonaro para tomar o poder não eram meras cogitações, mas propostas concretas que foram discutidas, elaboradas e registradas por escrito. O próprio Bolsonaro admitiu isso. Ele pessoalmente apresentou suas intenções aos comandantes do Exército, da Aeronáutica e da Marinha – como confirmaram em juízo –, e foi graças à recusa categórica dos dois primeiros em embarcar nessa aventura que os planos não avançaram.
O processo, portanto, baseou-se em muito mais do que apenas no depoimento do ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, como afirma Tarcísio de Freitas. Mas, ao fazer essa alegação, o governador segue uma típica estratégia do bolsonarismo: mentir, omitir e se colocar como vítima quando, na realidade, é o autor.
Sinal fatal
A postura de Tarcísio é ainda mais grave porque não ataca apenas o Supremo Tribunal Federal, mas contribui para deslegitimar todo o já disfuncional sistema de Justiça brasileiro. Numa sociedade em que quase ninguém assume responsabilidade por seus atos e todos colocam o interesse próprio acima do coletivo, o bolsonarismo envia o sinal fatal de que sentenças não valem nada e podem ser revertidas.
Poucos discordariam da frase de que a impunidade no Brasil tem proporções epidêmicas. Condenados a longas penas de prisão estão pouco tempo depois em liberdade, sobretudo políticos. Cria-se a impressão fatal de que lei e ordem nada valem e de que tudo é permitido. Certo e errado tornam-se negociáveis.
A preparação de uma anistia geral para os golpistas, como agora promovem Tarcísio de Freitas e o movimento bolsonarista antes mesmo de haver sentença, tem, evidentemente, um precedente. A anistia geral após a ditadura militar. Os crimes da ditadura não foram investigados, muito menos punidos judicialmente. Não houve acerto de contas, e o pensamento totalitário-militarista sobreviveu e mantém até hoje uma continuidade que ninguém encarna melhor do que o clã Bolsonaro e seus áulicos.
Se houver uma anistia geral, o Brasil continuará andando nesse círculo vicioso e repetirá mais uma vez sua história. Infelizmente, como tantas vezes, o Brasil parece condenado a andar sempre em círculos. Cada avanço, cada tentativa de escapar desse destino, é revertido pelas forças do passado.
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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha, Suíça e Áustria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.
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