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Berlim renomeia rua após disputa judicial de cinco anos

Stuart Braun
24 de agosto de 2025

Querela entre ativistas e moradores arrastou o rebatismo do logradouro Mohrenstrasse, considerado racista por sua conotação pejorativa. Novo nome homenageia filósofo negro.

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Ativistas revelam nova placa da Anton-Wilhelm-Amo-Straße
Capital alemã enfrenta passado colonial que permanece em seus logradourosFoto: Fabian Sommer/dpa/picture alliance

Após uma batalha jurídica que durou cinco anos, Berlim rebatizou oficialmente neste sábado (23/08) a antiga rua Mohrenstrasse, na região central da cidade, criticada pela conotação racista de seu nome.

A mudança só foi possível após uma decisão do Tribunal Administrativo Superior do estado, tomada na última sexta-feira, que rejeitou uma tentativa de última hora de barrar o ato.

O novo logradouro, Anton-Wilhelm-Amo-Strasse, homenageia um filósofo negro do Iluminismo alemão, que em 1734 se tornou o primeiro estudioso nascido na África a receber um doutorado europeu. A estação de metrô da rua também foi rebatizada sob o mesmo nome em um evento que reuniu representantes da prefeitura e ativistas antirracistas.

Uma longa jornada até a Anton-Wilhelm-Amo-Strasse

A disputa jurídica teve início em em 2020, quando o conselho distrital de Berlim-Mitte aprovou a eliminação do logradouro Mohrenstrasse na esteira dos protestos antirracistas que tomaram a capital alemã e outras partes do país.

O objetivo seria eliminar o "nome de origem racista, que criminaliza e fere a reputação nacional e internacional de Berlim".

Mohren é uma palavra antiga da língua alemã utilizada inicialmente como referência ao termo "mouros" para denominar de forma racializada os muçulmanos da Europa e do Norte da África. 

No século 18 o vocábulo passou a ser utilizado para designar pessoas negras sob uma conotação pejorativa e preconceituosa. No alemão moderno, o termo caiu em desuso.

Mas antes que a decisão fosse implementada, um grupo de moradores e comerciantes locais entrou com uma ação judicial contra a mudança, argumentando que o termo não carregava tal conotação quando a rua foi batizada, em 1706.

Trabalhador troca placa de rua rebatizada em Berlim
Autorizada em 2020, disputa judicial atrasou rebatismo da Mohrenstrasse em cinco anosFoto: IMAGO/epd

Em 2023, o Tribunal Administrativo da capital alemã permitiu a renomeação, mas os moradores recorreram da decisão. A disputa só foi decidida em julho de 2025, quando o Tribunal Administrativo Superior de Berlim-Brandemburgo referendou o entendimento de que os moradores não tinham base legal para contestar a mudança do nome.

Em agosto, o grupo denominado "pró-Mohrenstrasse" peticionou a mesma corte como uma última tentativa de barrar o ato, mas os juízes endossaram a decisão anterior e liberaram a troca de placas da rua.

Nome também remete à escravidão

"A descolonização não acontece apenas mudando alguns nomes de ruas", disse à DW na sexta-feira o cientista político e ativista de direitos humanos Joshua Kwesi Aikins.

A atual Anton-Wilhelm-Amo-Strasse atravessa o bairro histórico da atual capital alemã, a poucos passos do reconstruído Palácio de Berlim, símbolo do poder monárquico à época das incursões coloniais à África.

Ela também passa perto da antiga residência do chanceler federal alemão e do local onde se realizou a Conferência de Berlim de 1884-1885, em que líderes europeus "discutiram como poderiam dividir a África", nas palavras do escritor britânico-ugandense radicado em Berlim Musa Okwonga.

Essa conferência deu início ao domínio colonial da Alemanha na Namíbia.

Para os ativistas que defendiam a mudança, as conotações racistas da palavra Mohren derivam ainda da prática do século 18 de trazer africanos escravizados para a Alemanha como "mouros da corte", forçados a trabalhar como servos ou a entreter os reis prussianos como músicos.

"O nome dado à rua no início do século 18 transporta essa experiência racista de violência contra pessoas negras em Berlim para o presente", escreveu o historiador Christian Kopp, da iniciativa Decolonize Berlin-Mitte.

Ativistas costumavam pichar um trema no "o", transformando a palavra em Möhren (cenoura), dando um sentido mais leve à nomenclatura.

Anton Wilhelm Amo foi primeiro filósofo negro na Alemanha

A maior parte dos escravizados enviados à Europa partiam da colônia brandemburgo-prussiana situada no atual Gana, que existiu entre 1682 e 1721.

É de lá que o homenageado Anton Wilhelm Amo foi levado como escravo à Europa por volta de 1703. Em 1707, o mesmo ano em que a Mohrenstrasse foi batizada, ele foi presenteado ao duque alemão de Braunschweig-Wolfenbüttel.

O duque financiou seus estudos e o incentivou a seguir a vida acadêmica, o que lhe permitiu concluir o doutorado. Sua tese em Direito, na Universidade de Halle, hoje perdida, tinha o título "Os Direitos dos Negros na Europa".  Ele escreveu ainda uma segunda tese de doutorado em Filosofia, na qual dialogava criticamente com René Descartes e suas ideias sobre a dualidade mente-corpo.

Amo aulas nas universidades de Halle e de Jena, mas levava uma vida difícil e, em 1747, retornou a Gana, onde faleceu em data desconhecida.

Amo é lembrado como o primeiro filósofo de origem africana na Alemanha, embora tenha sido amplamente apagado da história intelectual europeia.

Ativista americana Audre Lorde oa lado da poeta ganesa May Ayim
May Ayim (à direita) trabalhou com a poeta e ativista americana Audre Lorde para construir uma identidade negra alemã em Berlim na década de 1980Foto: Dagmar Schultz

Alemanha enfrenta passado colonial

Apesar de a rua ter sido nomeado há mais de 300 anos, a estação de metrô homônima havia recebido este batizada somente em 1991, após a reunificação da Alemanha. Antes, levava o nome de Otto-Grotewohl-Strasse, em homenagem a um político da Alemanha Oriental.

O uso do termo racista já havia sido criticado na época pela pioneira ativista negra alemã May Ayim, poeta de origem ganesa que cofundou em 1986 a Iniciativa de Pessoas Negras na Alemanha.

Ayim dedicou-se a expor o racismo velado na Alemanha reunificada. Nos anos 1990, opôs-se fortemente ao nome da rua, que para ela simbolizava o fato de que a comunidade negra alemã havia sido excluída do processo de reunificação, essencialmente branco, após a queda do Muro de Berlim.

Em 2010, um trecho da margem do rio em Kreuzberg foi rebatizado em homenagem a Ayim, falecida em 1996. Foi um dos primeiros atos de descolonização em Berlim, já que anteriormente o local homenageava Otto Friedrich von der Groeben, fundador, no final do século 17, da colônia brandemburgo-prussiana em Gana.