Rins por dinheiro: No seio de uma rede de tráfico de órgãos
18 de abril de 2025Amon Kipruto Mely, de 22 anos, pensou que, ao vender o seu rim, iria começar uma vida nova e melhor. Após a pandemia da Covid-19, a sua vida não tem sido fácil, andando sempre a saltar de um emprego para o outro. Um dia, um amigo falou-lhe de uma forma rápida e fácil de ganhar 5300 euros.
"Ele disse-me que vender o rim era um bom negócio. Eu costumava recusar, uma e outra vez. Mas um dia, finalmente, aceitei. Depois, ele pôs-me em contacto com eles”, conta.
Parecia um golpe de sorte, mas conduziu-o a uma rede obscura de exploração, desespero e arrependimento.
Este trabalho é o resultado de uma investigação colaborativa de meses levada a cabo pelos meios de comunicação alemães Der Spiegel, ZDF e DW, que, em conjunto, seguiram o percurso de vendedores e compradores de órgãos, analisaram documentos, falaram com denunciantes e profissionais de saúde e descobriram como uma rede internacional - desde um hospital no Quénia a uma agência obscura que atraía recetores de órgãos da Alemanha - explorava pessoas vulneráveis em ambos os lados: Os jovens, desesperados por dinheiro, e os idosos, desesperados por um órgão que lhes salvasse a vida.
Amon Kipruto Mely foi apresentado a um intermediário que organizou o transporte para o Hospital Mediheal na cidade de Eldoret, no oeste do Quénia. Aí, Amon diz ter sido recebido por médicos indianos que lhe entregaram documentos em inglês, uma língua que ele não compreendia.
Não foi informado de quaisquer riscos para a saúde. "Eles não me explicaram nada. O que me tinha levado, apontou para as pessoas à nossa volta e disse: Olha, todos eles doaram e até estão a voltar ao trabalho”, conta.
Depois da operação, só lhe pagaram 3500 dos 5300 euros prometidos. Com esse dinheiro, comprou um telemóvel e um carro que rapidamente se avariou. Pouco depois, a sua saúde piorou. Teve tonturas e ficou fraco e acabou por desmaiar em casa.
No hospital, a sua mãe, Leah Metto, ficou chocada ao saber que o filho tinha vendido o rim. "Estão a ganhar dinheiro através de crianças pequenas como o Amon”, disse ela.
A história de Amon parece ser uma de muitas.
Willis Okumu é investigador do crime organizado do Instituto de Estudos de Segurança em África, baseado em Nairobi. À DW, conta que falou com vários jovens que lhe disseram ter vendido os seus rins na cidade de Oyugis, a 180 quilómetros a sudoeste de Eldoret.
Willis Okumu diz que "estas pessoas se estão a aproveitar das vulnerabilidades dos jovens de um país pobre e, mais uma vez, a maioria destes jovens é também uma das pessoas mais vulneráveis desta sociedade”.
Lei não é clara
No que toca à legalidade ou não do processo, Okumu afirma que "há uma zona cinzenta legal que este sindicato está a explorar”, pois, continua, "não existe nenhuma lei que impeça uma pessoa de doar um rim a troco de dinheiro e não pode ser processada por isso”.
O que é permitido, de acordo com a lei queniana, são as doações de órgãos a familiares ou por razões altruístas.
A DW falou com quatro jovens de Oyugis que dizem ter vendido os seus rins por apenas 1700 euros. Contaram como, após a sua cirurgia no Hospital Mediheal em Eldoret, os corretores lhes pediram para recrutar novos dadores por uma comissão de 350 euros cada.
Em declarações à DW sob condição de anonimato, um antigo funcionário de longa data do Hospital Mediheal revelou que a compra e venda de transplantes começou há muitos anos.
Mudança para um mercado mais lucrativo
Inicialmente, os recetores vinham da Somália e os dadores do Quénia. Mas depois, em 2022, os recetores começaram a vir de Israel e, a partir de 2024, da Alemanha. Os dadores para estes clientes bem pagos são transportados de avião de países como o Azerbaijão, o Cazaquistão ou o Paquistão.
Desde a mudança de recetores somalis para israelitas e alemães, o negócio tem estado a crescer, acrescentou, com cada recetor a pagar até 200 mil euros por um rim.
O Dr. Jonathan Wala, diretor da Associação Renal do Quénia, tratou vários doentes que regressaram com complicações pós-cirúrgicas.
"[Também temos relatos] de doentes israelitas que voltam com infeções graves e que morreram”, diz.
Negócios multimilionários protegidos do "topo"
Em 2023, o Ministério da Saúde do Quénia encomendou uma investigação ao Hospital Mediheal e descobriu que os dadores e os recetores muitas vezes não eram familiares. Foram realizados alguns transplantes de alto risco, como em doentes com cancro ou em pessoas extremamente idosas. Quase todos os procedimentos foram pagos em dinheiro.
A investigação recomendou que "a alegação de tráfico de órgãos devia ser investigada pelas autoridades competentes". No enanto, e apesar das descobertas alarmantes, o relatório nunca foi tornado público e não foi tomada qualquer ação.
Um investigador privado local em Eldoret, que monitorizou o comércio ilegal de transplantes, disse que pelo menos dois outros hospitais também estão envolvidos. No entanto, acrescenta que se investigasse estes casos, "a minha vida estaria em perigo".
"Há pessoas muito poderosas que podem estar envolvidas". Vai até ao topo do governo? "Sim."
O fundador e presidente do Grupo Mediheal é Swarup Mishra. O indiano é um antigo deputado e diz-se que tem boas relações com o Presidente do Quénia, William Ruto.
Apesar das persistentes acusações de tráfico de órgãos, o presidente nomeou-o presidente do Instituto de Vacinas BioVax do Quénia, propriedade do Estado, em novembro passado, um papel que permite a Mishra representar o Quénia como pessoa de contacto da Organização Mundial de Saúde e de funcionários de governos estrangeiros. Mishra não respondeu a repetidos pedidos de entrevista e deixou uma lista de perguntas sem resposta.
Enquanto isso, Amon e outros como ele lutam para sobreviver com um rim, a sua saúde está comprometida e as suas esperanças esmagadas.
"Se pudesse voltar atrás no tempo, não teria aceitado a remoção do meu rim. Odeio-me por isso”, lamenta Amon.