STP: "A justiça vai mal"
17 de fevereiro de 2025A crise no setor da justiça em São Tomé e Príncipe é sistémica. O seu estado de saúde "nunca foi bom”, segundo Carlos Semedo, juiz jubilado português nascido no arquipélago.
"Ela esteve sempre doente”. O advogado inscrito em São Tomé e Príncipe (STP) reage assim, em entrevista à DW África, às recentes declarações do juiz presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Manuel Silva Cravid, que afirmou recentemente, depois de uma audiência com o Presidente são-tomense Carlos Vila Nova, que o "setor da justiça está mal”.
O antigo assessor, em comissão de serviço, do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional em São Tomé (2020-2012), aponta as debilidades do setor, nomeadamente o nível de preparação dos juízes. Para Carlos Semedo, a fuga de juízes para outros setores é "algo muito preocupante” no conjunto dos problemas que enfrenta a justiça.
O jurista português deve voltar a São Tomé em princípio do mês de abril para, entre outros processos, avaliar como um dos advogados o reatamento do processo à volta do "caso 25 de novembro”. "Sou dos maiores interessados num esclarecimento cabal e das poucas pessoas que se envolveram com conhecimento de causa”, afirma Semedo, para quem "nada ficou bem feito”.
O advogado considera que "houve uma mascarada de justiça” no julgamento que condenou a 15 anos de prisão Bruno Afonso, mais conhecido por "Lucas”, como o único arguido do processo.
"O julgamento do Lucas foi tudo menos um julgamento correto”, critica, depois de dar a conhecer que voltará a São Tomé, possivelmente em abril deste ano, para dar seguimento ao processo.
DW África: O juiz presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Manuel Silva Cravid, afirmou há dias – depois de uma audiência com o Presidente Carlos Vila Nova – que "a justiça está mal” em São Tomé e Príncipe. É um dos indicadores de que se está perante uma crise neste domínio?
Carlos Semedo (CS): A afirmação do juiz-presidente atual do Supremo Tribunal de Justiça, Manuel Gomes da Silva Cravid, tem toda a razão de ser. E o que é de salientar é que o senhor juiz-presidente, a entidade responsável pela face da Justiça – considerada a quarta figura do Estado – ao fazer uma afirmação destas é com toda a autoridade que nós temos que tomar as suas palavras.
Estive em São Tomé e Príncipe, de 2010 a 2012, como assessor no Supremo Tribunal de Justiça e no Tribunal Constitucional, que estavam associados naquela altura. Isto é, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça era também, por inerência de funções, o presidente do Tribunal Constitucional, o que veio a ser mudado com a publicação da lei do Tribunal Constitucional, com a separação física e orgânica das duas instituições.
Mas eu sou daqueles que observei, pratiquei, conheço que a situação da Justiça em São Tomé, em termos genéricos, nunca foi boa. Ela está mal, esteve sempre muito doente. E, finalmente, esse reconhecimento por parte do presidente do Supremo tem muita validade porque vai poder permitir-nos inventariar as causas, fazer um diagnóstico e, possivelmente, encontrar soluções para a melhoria.
DW África: A fuga de juízes para outros setores é apenas uma face do problema?
CS: A fuga de juízes é sempre algo muito preocupante. É uma face do problema porque duas situações se reconhecem. Não têm condições para exercer as suas funções e estas condições até podem ser condições materiais, condições económicas, mas são solicitados para outras áreas onde sejam melhor pagos.
Sabe-se que o salário de um juiz em São Tomé e Príncipe não é um salário cativante, não é atrativo, embora tenham todas as outras prerrogativas, como a viatura, combustível, casa, o que minora um bocadinho. Mas a compreensão que têm da função de juiz, a visibilidade que tem o juiz, não é algo muito próprio em São Tomé. Também um bocado por culpa dos próprios juízes.
DW África: O bastonário da Ordem dos Advogados, Hérman Costa, disse na sua investidura em janeiro de 2024 que a gravidade dos acontecimentos que o país vive nos últimos tempos deve convocar todos os são-tomenses para uma reflexão profunda. Esta afirmação já indiciava que o setor da justiça estava doente?
CS: O Herman Costa está numa posição privilegiada porque, sendo embora advogado, pratica as leis do país e confronta-se diariamente com os processos nos tribunais. Por outro lado, sendo bastonário, tem uma responsabilidade acrescida.
Esta sua afirmação é de alguém que conhece o mundo judiciário e sabe quais são as suas fraquezas. Já saí da carreira de juiz em Portugal e conheço o mundo judiciário perfeitamente, quer o mundo dos tribunais, quer o mundo do Ministério Público, quer o próprio mundo dos advogados. E digo-lhe que a preparação dos juízes tem sido muito má nestes últimos anos.
Ultimamente, a polémica entre Silva Cravid e o [então] Governo de Patrice Trovoada e a ex-ministra da Justiça, Ilsa Amado Vaz, foi de anulação de um concurso que o Supremo Tribunal fez para novos juízes. Há carência de juízes de primeira instância, há uma fraca formação dos juízes de primeira instância, incluindo preparação a nível de Direito. E, depois, como é que um país pode ter juízes seguros se acabam de sair da universidade só com mera licenciatura, fazem um concurso para juízes e exercem a posteriori. Não há estágios, não há preparação, não há formação, não há acompanhamento.
Aqui em Portugal, há um período de entre dois a quatro anos para a formação de um juiz depois do percurso universitário. Em São Tomé não há nada disso. Por isso é que a justiça começa por falhar na primeira instância e depois falha também no Supremo Tribunal.
DW África: Já lá vão mais de dois anos depois dos acontecimentos de 25 de novembro, alegadamente descritos como tentativa de golpe de Estado. A justiça são-tomense tratou do caso para julgamento dos alegados implicados, mas os militares supostamente envolvidos nas mortes no quartel das Forças Armadas ficaram impunes. O que falta fazer para se repor a justiça neste caso?
CS: Fui um dos grandes lutadores e ainda sou dos maiores interessados num esclarecimento cabal [deste caso]. E sou das poucas pessoas que se envolveram nele com conhecimento de causa.
Falta fazer tudo porque nada ficou bem feito. Houve uma mascarada de justiça, porque o julgamento do Bruno Afonso, [conhecido por] Lucas, foi tudo menos um julgamento correto, de acordo com as normas legais. O Lucas estava acusado, como um dos ditos assaltantes do quartel, um dos ditos golpistas, de nove crimes. Entre eles, tentativas de homicídio e detenção de arma proibida, mas acabou por vir a ser condenado, de acordo com aquilo que o Governo quis, por um tribunal incompetente. Porque o juiz que presidiu a audiência de julgamento era daqueles juízes que saíram para outra função.
Ele desempenhava a função do presidente da comissão de imprensa. Ora, a lei diz que um juiz em exercício efetivo de carreira não pode exercer qualquer outra função pública ou privada, remunerada ou não, a não ser funções de docência autorizada. Este senhor juiz era, em exercício, o presidente daquela comissão de imprensa, portanto, não podia julgar.
Só por aí o tribunal é ilegítimo. Por outro lado, não há prova cabal concreta de que o Lucas tenha efetivamente assaltado o quartel. A prova que existe é que o Lucas foi metido dentro do quartel com uma espingarda apontada às costas por um dos militares envolvidos na chamada "inventona” do golpe de Estado. Bom, a condenação do Lucas foi uma condenação fantoche para satisfazer o Governo.
Por outro lado, temos o não julgamento dos [verdadeiros] assassinos. Isto é que está em causa. São os militares que assassinaram, sabemos quem são. Sabemos os atos que praticaram.
Há uma manobra fantoche de um sector dos tribunais que entenderam declarar-se incompetentes para eles serem julgados por um tribunal militar que nunca mais se reúne, nunca mais vai ser constituído. Porque, veja o absurdo da situação. No decreto do governo que designa esse tribunal, inclusivamente existem bombeiros e polícias.
DW África: Continua a fazer sentido um Tribunal Militar para lidar com este caso?
CS: Não. O tribunal militar não faz sentido nenhum, nem tem qualquer tipo de competência.
DW África: Então, admite um novo julgamento deste processo?
CS: Julgamento civil, sempre, porque os crimes cometidos pelos militares são crimes de homicídio, são crimes de tortura, são crimes de natureza civil. Não há um único crime de natureza militar cometido pelos militares. Portanto, eu classifico de fantochada, uma paródia de mau gosto. Constitui-se um tribunal militar para julgar militares que não cometeram crimes militares e crimes civis. E depois nunca se vai constituir esse tribunal militar. Tem 14 ou 15 membros. Onde é que já se viu?
O tribunal militar funcionaria como regra, como um tribunal comum. Isto é, com um juiz-presidente e um promotor de justiça. Ora, o tribunal militar nomeado pelo Governo de Patrice Trovoada tem 13 ou 14 membros, entre eles bombeiros voluntários.
DW África: Antes de deixar o cargo, o ex-primeiro ministro, Patrice Trovoada, propôs uma revisão da Constituição com pendor para o Presidencialismo. É imperiosa a revisão da Lei fundamental do país? Porquê?
CS: Considero absolutamente necessária a revisão da Constituição de São Tomé e Príncipe. Isto é, desde 2008, que já deveria ter iniciado o processo normal de revisão constitucional. Nós estamos em 2025, portanto, há uma série de aspetos E quais são esses aspetos? Há aspetos de redação, há aspetos de contradição entre artigos, há aspetos em que a sociedade evoluiu e a Constituição parou.
Dou-lhe um exemplo. A Constituição diz que compete à Assembleia Nacional nomear e demitir os juízes-conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, mas não fala rigorosamente nada em relação ao Constitucional. Há uma lei que foi criada pela Assembleia Nacional a dizer que, de facto, compete à Assembleia Nacional nomear os juízes do Tribunal Constitucional, mas a própria Constituição não refere isso.
Por outro lado, a Constituição ainda tem normas transitórias que se aplicavam quando foi da transição dos poderes do Presidente Miguel Trovoada para aquela discussão para o Presidente Fradique de Menezes. Naquela altura, é o que vinha do regime da Constituição de 74, era um regime presidencialista, não um regime presidencialista do tipo angolano ou do tipo francês ou do tipo americano, mas um regime presidencialista desenhado pelo Jorge Miranda, um constitucionalista português, em que o Presidente da República compartilhava os poderes com uma Assembleia e com um governo. Mas esse governo era um executivo independente escolhido nas listas das legislativas e não um governo nomeado pelo Presidente, como é em França.
No entanto, o Presidente podia presidir ao Conselho de Ministros. Isso é que lhe dava aquele pendor presidencial. Ora, com a revisão de 2003, isto foi alterado.
O Presidente da República pode presidir ao Conselho de Ministros por solicitação do primeiro-ministro. Eles introduziram isto para impedir o Fradique de Menezes de tomar os comportamentos que ele tomava.
Eu entendo que um país como São Tomé e Príncipe não deveria ter um regime tripartido, desnecessário, muito caro. Deveria ter um regime presidencialista com uma redução de membros da Assembleia Nacional ao máximo de 25 ou 27 e com uma redução de ministro ao máximo de cinco, sendo um Presidente, como Presidente da República, com poderes executivos também. Isto é, sendo chefe de Estado e chefe de Governo.
São Tomé e Príncipe já tem um regime de prática democrática para permitir que um Presidente. Veja o que é que aconteceu. Patrice Trovoada faz os desmandos que faz até que um Presidente da República diga "vou demiti-lo” e o povo está todo favorável a essa demissão.