"A guerra não acabou" em Angola
4 de fevereiro de 2025"Angola investe muito pouco em educação e em saúde. Sem isso não pode haver uma transformação estrutural do país", afirma António Costa e Silva em entrevista à DW.
Para o angolano que foi ministro da Economia e do Mar no Governo português de António Costa, "o país – 50 anos depois do inüicio da luta pela independência – não atingiu nenhum dos seus grandes desígnios", nomeadamente a criação de "uma economia próspera" capaz de "tirar grande parte dos angolanos da miséria".
Para Silva, que nasceu em Angola em 1952, a principal aposta para o desenvolvimento do país passa pela educação.
Segundo Costa Silva, a guerra civil, a mais longa da história de Angola, marcou o país e as pessoas. Mas, acrescenta que "a guerra não acabou", porque há um combate diário persistente pela sobrevivência. Um combate agora sem armas, na luta contra a fome.
Costa Silva, que elaborou, em 2020, a Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030 e presidiu a Comissão Nacional de Acompanhamento do Programa de Recuperação e Resiliência desde maio de 2021, afirma que Angola ainda tem pela frente desafios enormes "a nível da diversificação da economia, da minimização da dependência dos recursos naturais, particularmente, do petróleo", mas também com vista à "criação de diferentes polos de desenvolvimento e, sobretudo, na luta contra a pobreza, que continua a grassar grande parte da população".
A propósito dos próximos pleitos eleitorais, António Costa Silva lembra que "a alternância democrática é absolutamente fulcral no funcionamento dos regimes e das democracias".
O ex-ministro é autor do livro "Desconseguiram Angola", acabado de lançar em Lisboa, escrito no auge da guerra civil e que deixou marcas profundas na sociedade angolana.
DW África: Porquê "Desconseguiram Angola"?
António Costa Silva (ACS): "Desconseguiram Angola" é um livro sobre a destruição imensa causada no país pela Guerra Civil Angolana, que durou 26 anos, das mais longas de África, entre 1975 e 2002, com curtos períodos de paz, que rapidamente eram interrompidos e a guerra regressava. É um retrato de como a guerra devastou o país, infligiu um sofrimento indizível ao povo angolano; é exatamente um grito de protesto contra isso, porque a guerra, no fundo, deixa sequelas para gerações e gerações.
DW África: O livro, escrito no auge da guerra civil, pode ser entendido como uma crítica ou autocrítica ao percurso da República de Angola até aos nossos dias, tomando em consideração o desencanto de grande parte daqueles que lutaram pela independência e cujos sonhos de um país melhor ainda está longe de ser uma realidade?
ACS: Penso que sim. Este ano vamos comemorar os 50 anos da data da proclamação da independência de Angola. A independência foi proclamada pelo presidente Agostinho Neto no dia 11 de novembro de 1975, e acho que é muito importante o país fazer um balanço. E apesar da guerra civil já ter terminado em 2002, Angola continua a confrontar-se com desafios importantes a nível da diversificação da economia, da minimização da dependência dos recursos naturais e, particularmente, do petróleo, da criação de diferentes polos de desenvolvimento do país e, sobretudo, da luta contra a pobreza, que continua a grassar grande parte da população.
DW África: Diz que "a guerra não acabou", porque há um combate diário pela sobrevivência. Os "guerrilheiros urbanos", como lhes chama no seu livro, combatem agora sem armas, na luta contra a fome. Também disse que há estropiados de guerra que pedem esmola nas ruas. É esta Angola que desejava ver hoje?
ACS: Não! Não é de maneira nenhuma a Angola que desejava ver. É preciso notarmos que a guerra criou essas gerações de estropiados, gerações de crianças órfãs, famílias dizimadas; portanto, criou muitas feridas no país. E não podemos esquecer também que mais de 80% da população angolana vive abaixo da linha de miséria e todos os dias luta pela sua própria sobrevivência.
E, portanto, apesar de o Presidente João Lourenço ter declarado, no início do seu mandato, a luta contra a corrupção e o desenvolvimento de uma nova via para o país, essas transformações são transformações muito lentas e não estão, digamos, a redimensionar o desenvolvimento da economia angolana.
DW África: Na sua opinião o que ficou por fazer, ou melhor: o que Angola deve fazer mais para lograr os anseios daqueles que acreditaram na luta armada pela independência, iniciada a 4 de fevereiro de 1960?
ACS: Eu acho que o investimento mais produtivo que o país pode fazer é o investimento em educação. E, se formos ver, Angola investe muito pouco em educação e em saúde. Essas são as áreas absolutamente cruciais, porque só com uma população educada e saudável é que o país pode desenvolver-se. Angola tem uma das populações mais jovens do mundo, o que é em si um grande trunfo para o desenvolvimento do futuro. Mas nós precisamos de grandes apostas na educação e na saúde. Sem isso não pode haver uma transformação estrutural do país.
DW África: Como angolano, que avaliação faz, no plano económico e social, deste percurso, no ano em que Angola assinala 50 anos como país independente?
ACS: O meu balanço é um balanço triste. Portanto, depois de 50 anos, o país não atingiu nenhum dos seus grandes desígnios, nomeadamente criar uma economia próspera, tirar grande parte dos angolanos, senão a totalidade, da miséria, apostar na educação e no desenvolvimento do país. Portanto, Angola continua a ser um país com muitas potencialidades, mas é quase como o Brasil de África, um país com muito futuro, e às vezes esse futuro não se está a materializar. E aí é preciso avaliar para ver quais são as transformações.
DW África: É um defensor da liberdade, como referiu na apresentação do seu livro: Considera que em Angola vive-se em plena liberdade, sabendo que há direitos fundamentais (como o direito à manifestação, o direito ao protesto) que ainda não são respeitados?
ACS: Eu penso que Angola fez um percurso a esse nível. O regime hoje não se compara com o regime totalitário que existia nos primeiros anos após a independência, que conduziu à prisão de milhares de angolanos e à morte de muitos outros, sobretudo na sequência da tentativa de golpe de Estado de 27 de maio de 1977.
Penso que o país avançou, já temos mais liberdade de imprensa, mas há outras liberdades que são fundamentais. Para mim a essência da liberdade é a dignidade das pessoas. E a dignidade das pessoas significa terem uma vida com oportunidades, uma vida em que possam fazer escolhas, possam desenvolver-se em condições económicas atrativas, e é isso que ainda falta em Angola. E sem esses direitos fundamentais não há, digamos, o atingir dos objetivos cruciais por quem os patriotas angolanos se bateram.
DW África: Afirmou que Angola é um caso de profunda reflexão, onde reina a reconciliação. Em nome da democracia e dessa liberdade, prevê uma alternância política nas próximas eleições?
ACS: Não sei, vamos ver. Nas últimas eleições tivemos uma surpresa extraordinária, que foi a vitória da UNITA em Luanda. Luanda sempre foi um dos grandes bastiões do MPLA, com apoio massivo ao MPLA, e a UNITA ganhou com 60%, o que significa que as pessoas estão a alterar, digamos, algumas das suas preferências.
Portanto, tudo isso vai depender do que o poder político atual conseguir – das promessas que conseguir materializar, da confiança que conseguir conquistar ou não ao nível das populações. Mas a alternância democrática é absolutamente fulcral no funcionamento dos regimes e das democracias. E basta olhar para o que se passou no Botswana, onde o partido que governou o país por décadas e décadas perdeu as eleições e o Presidente saiu e entregou o poder a quem ganhou as eleições.
Portanto, nós queremos, sobretudo, que Angola seja também um país saudável, democrático, no futuro, que haja essa alternância, que possa existir essa alternância e se assim os eleitores o decidirem. Uma coisa é certa, a soberania reside no povo e o povo angolano é soberano para fazer as suas escolhas e elas têm que ser respeitadas.
DW África: Também mostrou-se bastante incrédulo em relação ao espírito das guerras fratricidas que acontecem em várias partes do mundo, na Ucrânia, no Médio Oriente. É possível encontrar ou propor uma receita para que se acabe com as guerras e se preocupe mais com o desenvolvimento humano?
ACS: Sim, a espécie humana é dotada de uma extraordinária qualidade, que é a linguagem. Nós podemos falar uns com os outros, discutir uns com os outros. E se formos ver, a origem de muitas guerras está relacionada com o falhanço absoluto da linguagem e da comunicação.
A guerra civil em Angola está na base disso, porque os líderes políticos não foram capazes de dialogar uns com os outros e terem uma plataforma de entendimento. E o resultado é a destruição massiva do país.
E o mesmo se verifica hoje, se olharmos para o Médio Oriente, por exemplo, para o genocídio do povo de Gaza, as guerras dos Balcãs na Europa, os conflitos grandes que existiram em África. Na nossa memória está sempre presente a guerra também que teve lugar no Ruanda, com a destruição em poucos meses, na primavera de 1994, e a morte de 800 mil tutsis, só porque tinham uma origem étnica diferente da elite política que estava no poder na altura. Isto é inaceitável no século XXI.
DW África: Um conflito volta a ribalta, entre o Ruanda e a RDC…
ACS: Sim. Mas são essas feridas que depois voltam e a espécie humana parece não aprender nada com os seus erros. A coisa mais preciosa que nós temos é a vida. Repare que a coisa mais preciosa que a Angola tem, o Ruanda tem ou, em Gaza, o povo palestiniano tem, é a vida das pessoas, porque é com as pessoas que se constroem os países e se constroem sociedades inclusivas e desenvolvidas.
E, portanto, todo este percurso mostra que as guerras não são realmente uma solução. E a destruição depois leva esses países a emergirem naquilo que alguns analistas chamam "as armadilhas dos conflitos armados", que depois inibem o desenvolvimento económico e social dos países.
É isso que acontece. E nós temos que fugir da "armadilha dos conflitos armados" e resolver os problemas das pessoas e construir sociedades muito mais saudáveis.