27 de Maio: Para quando uma Comissão da Verdade?
27 de maio de 2025A Comissão para a Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (CIVICOP) tem conduzido o processo sobre a chacina do "27 de Maio de 1977" de "forma opaca e com falta de transparência", procurando minimizar os seus impactos na sociedade angolana. "As ossadas que têm sido entregues são duvidosas", afirma um dos sobreviventes.
Miguel Francisco, vulgarmente conhecido por "Michel", é autor de vários livros, entre os quais "Nuvem Negra", que retrata aquele período negro da história de Angola que completa hoje 48 anos.
O então militar das forças armadas fiéis ao Movimento Popular de libertação de Angola (MPLA) pertenceu à nona Brigada de Infantaria Motorizada. Em entrevista à DW, diz que o pedido de perdão feito pelo Presidente de Angola, João Lourenço, em maio de 2021, "não era genuíno" e defende ser preciso que se determine "quem foram os responsáveis e porque é que o fizeram nos moldes como foi feito" para que haja reconciliação.
DW África: Diz que foi uma das vítimas dos acontecimentos fatídicos do 27 de maio de 1977. Qual é o seu testemunho vivo sobre os episódios que marcaram esse período negro da História de Angola?
Miguel Francisco (MF): Quando se deu o 27 de Maio, eu não estava no quartel porque se estivesse, estaria morto. Quando expulsaram Nito Alves e José Van-Dunem daquele célebre comício que se realizou na cidadela, eu estava de serviço. Saí no dia seguinte, domingo, com uma folga de serviço. Então, quando se deu o 27, eu estava em casa porque depois estive doente. Já não consegui ir ao quartel apresentar-me. Assisti todo o processo fora e, mesmo assim, à noite foram à minha casa à 01:00 hora da madrugada tentar levar-me. Só que eu não abri a porta e eles também não arrombaram. Ora, passados uns dias, para resumirmos isto, fui apresentar-me pessoalmente no quartel, no dia 4 de junho, e quando chega no quartel, fui preso.
DW África: Em que medida o peso destes acontecimentos que deixaram muitas famílias sem fazer o luto até hoje pode contribuir para o processo de pacificação, estabilidade e harmonia na sociedade angolana, apesar do pedido de perdão apresentado pelo Presidente João Lourenço? Considera que o pedido de perdão foi genuíno?
MF: Gostaria que fosse e é a vontade de todos os sobreviventes, mas infelizmente o processo tem sido conduzido de forma muito opaca, com muita falta de transparência. Chegamos à conclusão que, afinal, o pedido de desculpa do senhor Presidente da República não era genuíno, porque a Comissão para Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (CIVICOP) está a conduzir o processo com uma finalidade: a de minimizar apenas os impactos que o 27 de Maio causava.
DW África: No processo de devolução de cadáveres às famílias – um processo que ainda não terminou – como avalia o papel da CIVICOP? O que deve ser corrigido?
MF: O grande problema é que o processo de devolução das ossadas não é transparente. O que deviam fazer era contactar uma equipa de especialista em medicina forense para a identificação dos cadáveres com credibilidade suficiente e, depois, fazer um processo corretamente bem encaminhado. Mas não é isso o que está a acontecer. É por isso é que os familiares das vítimas reclamam que o processo não tem sido conduzido com aquela transparência, porque já se chegou à conclusão de que as ossadas que têm sido entregues são duvidosas, muitas vezes não são das próprias pessoas que morreram.
DW África: Ainda é pertinente a proposta das associações do 27 de maio de criação de uma alta autoridade para investigar os crimes cometidos durante o 27 de maio de 1977?
MF: Esta é que é o grande problema. Esse processo do 27 de Maio é muito complexo, é muito profundo. Dada a gravidade do problema, não se pode resolver com um simples pedido de desculpas, a entrega nas ossadas, certidões e pronto. Não. Temos que ir às causas que estiveram na base do próprio surgimento de 27. Fundamentalmente, o que é que esteve na base para haver aquele massacre que vitimou milhares e a forma como foram mortos, sem julgamento e de forma arbitrária. Tem que haver mesmo uma Comissão da Verdade para se determinar quem foram os responsáveis por esta matança e porque é que o fizeram nos moldes como foi feito. Sem isso, nunca haverá reconciliação.